Em 21 de abril de 1988, Jorjão-doido estava no bar conversando com o sorveteiro, tinha uns papéis cor de abóbora. Poucos minutos antes eu encontrara Valdeneido, em frente ao Foto Chilon, em estado de graça espiritual, em frente a Sideral sorveteria:
- Ouvi Stormbringer de manhã, “Holy Man” elevou minha alma, então não me atenta não, não vem com esses encosto, entojo, que eu estou leve, moço, flutuando, pleural.
Na verdade Valdeneido já tinha a alma impregnada de outras coisas, mas, posteriormente, a substância indizível dos harmônicos vocais do David Coverdale me fariam rever essa posição primária. Serão secundários (?), acompanhem-me. Disso sei hoje, então era difícil os eixos devidos, a gente só conseguia ouvir os harmônicos primários e uns white vinil noises bem baixinhos e de bom sentido... mas já era o bastante, e o prudente, pra ficar meio doente assim zonzo, devera (nada desses posteriores de serpente branca e chocalho):
- Me empresta esse disco...
- Depois, depois mesmo, você vai acreditar
- Vadeneido, explica!
- Lógico que não, espera o desvio da luz violeta,
vai reparando isso no arco-íris...
- Em João Pinheiro a gente já havia ouvido, lembra?
Naquela lanchonete.
- Aquele era outro, aguarda, confia e não me amola.
Subi, três semanas depois, a Rua da Mata, havia um risco vermelho escuro e friável perto do meio-fio que margeava a ladeira, era a passagem da enxurrada de março ou sombra de arco-íris. Em maio, em Patos, cicatrizes de enxada em beira de estrada podem ter nome de caminho de enxurrada, talvez até ditas sombras de arco-íris a depender do declive e da hora, do ângulo de reflexão. Ainda fica um lodo pouco que escorrega o redley de quem sobe a rua. Mas chego na casa dele enfim, sobre pés de vento e sob pés carregados de limão capeta:
- zzz
- Valdeneeeido?!
- Opa?
- E o disco?
- Tá bem... vai mais volta, com todos os vês...
Levei o Stormbringer pra casa como quem leva a tempestade de baixo do braço, sob a face, sob o sábado à tarde. As pessoas da rua não tinham feições ou cores, corriam delas. Quando cheguei afobado o homem sagrado de cara, frase e barulho me fez entender o recado. Talking about the moon and sun. Era o bastante pra primeira vez. Subi pro centro açodado depois, quem fica em casa numa hora dessa não agüenta a atmosfera da cor das paredes, subi pro centro e no centro estava o Jorjão-doido da terceira trindade, neo-pentecostal em breve, no bar conversando com o sorveteiro. Seus papéis cor de abóbora conto depois o prelúdio que eram.
- Você conhece o Stormbringer Jorjão?
- Gosto não.
- Não??? Mas, porque?
- Porque tirou o metálico, a seriedade da banda... sou mais os outros...
- Que isso...
- Eh... e não gosto desse batuque dançadinho do Glenn Hughes.
A maré vermelha de pirrófitas unicelulares ainda arfava inconsciente no meu pulsar de mental mirim, quase entreguista, púrpura, púrpura profundíssima de estranhezas mercuriais que avançavam insones, em vigília. Nunca mais esqueci isso enquanto dormindo, não fui vencido. Seqüelado talvez, com disco debaixo do braço. Passei em frente a Igreja dos Capuchinhos e do Rosário, com o barro roxo do tênis marcando o caminho e o disco, um pouco sem jeito e sem descanço, cismado, plano. Que batuque black funky dançadinho é esse que ele estava falando? Era proibido? Jorge-doido me dói a alma, a compreensão e o ouvido. Nunca mais os harmônicos coverdélicos me saíram de lembrança enquanto dormindo, apesar disso, secundários hoje encontram, acordados, os tons escuros do vermelho da tarde que me indicariam dessa sobreposição de som e sombra. Called to madonna to give me a line. Não entendia, entendo hoje mais ou menos. O sol que a gente enxerga no crepúsculo é uma imagem aparente, a luz sofre refrações que nos enganam os olhos, os sentidos, os modos, as dissonâncias.
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(continua)