domingo, 21 de junho de 2015

O insone da Rua Cônego Getúlio

Se você lembrasse do que eu lembro talvez me desse um alento
Se você lembrasse mais ainda do que eu não lembro
poderia me explicar teorias que eu tenho
melhoraria minha vida enquanto acordado
Sobre dias de sol e de chuva, 
sobre temporais e ruas sem nome
saí de casa e segui pela cidade pisando 
apenas num tipo de calçamento branco, 
bloco de concreto angulado que substituía o asfalto 
saí até que ele se terminasse em rua já em terra de chão
nesse ponto parei e tornei a seguir as ruas calçadas, 
dei meia volta, mas tirei os sapatos, 
faz menos barulho, está quase amanhecendo 
tornei a seguir não sem antes comtemplar aquela noite 
escura e seu fim principiado 
subi no telhado na minha casa 
e fiquei lá da manhãzinha 
aguardando o sol levantar forte
meus pais e mães dormindo logo abaixo
equilibrando, toquei violões para os vizinhos, 
pro céu e para as árvores, acho que ninguém ouviu 
as coisas são se dizem surdas enquanto falam conosco
acordei acordado, desci do telhado e sentei ao meio-fio
passei três meses sem dizer palavra, um bom tempo parado
o mundo não me apresentava possibilidades de viver na noite, somente
me decidi pela noite como extensão insone de mim mesmo
dos meus blocos de concreto anguloso roubados
voltei minha ata insana que concorda apenas com decisões tomadas

gosto de ver a chuva porque ela é sempre a mesma
é como se estivesse vendo algo que está fora do tempo
gosto de ver hoje porque nela lembranças param de ter sentido
hoje porque nos inventamos fora do tempo 
há 10 anos porque seríamos dois eventos concorrentes
há 20 anos porque já me percebia seu fascínio 
há 30 anos porque ainda estávamos nos conhecendo
e, daqui a dez anos, quando nos trataremos como milagres

O vendedor de flores de plástico (#2)

eu sei que você desconfia de mim
não é possível comércio às três da manhã
salvo por qualquer coisa que nos desfaça 
de estar dormindo ou acordado
qualquer coisa menos essas flores de plástico 
que te ofereço a um preço e um passo cifrado
faço isso não pelo adorno, mas pelo desvio 
faço isso porque mais precisam de mim
do que eu preciso
você sabe que o que eu vendo não são flores
vendo meu trabalho de estar aqui sob a noite
não sei o que você tem usado, mas tenho, imaginado
se nesse caule se escondessem acusadas poeiras, neve
me acusam de comércio de contrastes
entidades de consumo lícitas para um lado e para o outro

O vendedor de rádios de carro

andava a noite e tinha um isqueiro 
com o qual fazia sinais indecifráveis 
códigos, gírias, rádios de carro
tudo era possível de ser passado 
o sangue frio, o silêncio inflamado 
o peso do corpo que pôs sobre o capô 
abrira a porta do carro importado 
ninguém sabia o que ele queimava 
havia uma fogueira atrás da sua casa 
talvez a fumaça enviasse comandos 
nem um santo sabia o que ele ouvia 
quando estava calado ou falando 
era uma espécie de cabala mística 
feita com objetos roubados 
era uma espécie de romaria 
com gírias e gestos calculados 
tudo tinha um propósito 
era tudo de caso pensado