Achei interessante essa comparação de 1968 com Dionísio (Vicente Verdú). Será que para o ano de 1989, então, caberia a analogia a Apolo? O saber dionisíaco opõe-se ao apolínico e, segundo Elio Gaspari "O grande ano da segunda metade do século passado não foi 1968, mas 1989. O colapso do império soviético e a destruição dos regimes socialistas europeus (...) Foi 1989 que permitiu aos revolucionários de 1968 a acomodação de suas idéias e biografias ao século XXI. (Numa perfídia dos algarismos, 89 é 68 invertido e de cabeça para baixo)". Dionísio é o deus da desmesura, da contradição e da volúpia nascida da dor enquanto Apolo a tudo simplifica, destaca, torna forte, claro, inequíco e, segundo Nietzsche, é "a liberdade sob a lei".
“Em 2008 acontecerá o 40º aniversário de um momento crucial do século 20. Muitos estopins pegaram fogo ao mesmo tempo, e uma geração se rebelou contra a sociedade burguesa. "Desejar a realidade é bom; realizar os desejos é melhor." A revolução de 1968 recendia a orgia. Assim, não se pode considerar estranho que seus detratores a vissem como um ataque de raiva de jovens mimados. E obscenos. O clima dionisíaco de 1968 foi o núcleo da revolta. Todas as críticas feitas aos fogos de artifício políticos daquele ano deixam de levar em conta sua fogueira fundamental, acesa pelo sexo e graças ao movimento de liberação da mulher. O capitalismo, porém, se manteve em pé. Trocou sua pele antiga por um cetim das cores do arco-íris, e ganhou a capacidade de desenvolver-se como grande festa pública de consumo agregada à do orgasmo e do antiautoritarismo. O capitalismo de produção e repressor rumou em direção ao cromatismo musical do capitalismo de consumo. O crescente valor do jovem significou uma inversão na hierarquia de valores. O protótipo burguês baseava sua moral em virtudes capitais: o poupar, a utilidade e a finalidade. Maio de 68 refutava cada um desses princípios. Diante do poupar e da contenção sexual, propugnava o gasto orgástico; diante da renúncia, o prazer já. A revolução "agora!" foi o grito fundamental que hoje se refere a qualquer coisa, desde o eletrodoméstico até a casa, da viagem ao fast food. A economia revelou-se equivalente à repressão, e a utilidade ou finalidade se manifestaram como a marca desencantada do projeto e da ação. Diante do poupar repressivo, o gasto; da utilidade calculada, o imediatismo e, da finalidade, a aventura. Esses elementos fazem o triângulo da cultura de consumo. Se os protagonistas de 68 conclamavam à criatividade, ao prazer, à liberação generalizada, também apelavam contra a sociedade de consumo, que, paradoxalmente, tornou-se a mais criativa e a que mais correspondeu a seus anseios de pecado sem penitência. O paradoxo era este: seus líderes repudiavam o consumismo sendo grandes consumistas por excelência: do tempo, do sexo, dos direitos, dos meios de comunicação. De fato, tanto Maio de 68 quanto o sistema geral de consumo são inconcebíveis sem a gigantesca explosão da "mass media". Veio daí o fato de a revolta ser, por um lado, muito ampla, como uma endemia, e, por outro, muito efêmera. Nascida e desenvolvida como um acontecimento sensacionalista num jornal da imprensa marrom, por mais vermelha pudesse parecer. Hoje não vale a pena qualificar aquela subversão como êxito ou fracasso - suas reivindicações se inscreveram na alma social como um bordado do mesmo fio. E o fizeram com tanta naturalidade quanto um ritmo que se encaixa perfeitamente com a melodia tocada em todo o mundo desde então: a melodia do novo capitalismo de consumo.”
Vicente Verdú - 20.01.2008.